quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Dores


Mãe, bem que poderiam inventar uma pílula que acabasse com dor de amor, né não? Porque acho que quase toda dor que não vem do corpo, mas da alma e coração, são tudo dor de amor.

Ah, mãe, não fala que sou muito nova pra entender dessas coisas... Quem te disse que não sei o que é o amor? Você acha que amor só nasce no coração de gente adulta? Pois eu discordo. Acho que toda pessoa já nasce com o amor estampado na alma, tipo uma tatuagem que não sai por nada. Só que tem gente que esconde, né?

Não, mãe, eu não tô pensando em fazer uma tatuagem não... Pode ficar tranquila. É claro que eu não faria uma coisa dessas escondido de você... Mas sabe que acho que são tantas marcas que as pessoas carregam, que às vezes elas ficam cansadas com o tanto de peso que carregam na alma?

Ah, mãe, eu falo tanto de alma porque eu acredito que ela exista sim, e que é imortal. Não, não tem nada a ver com religião... Acho sim que cada pessoa é na verdade uma alma e que tem gente com alma colorida, leve, outras com alma cinza e pesada. A minha? Ah, acho que parece um arco-íris, mas às vezes me pesa um bocado...

Mãe, não faz essa cara... Já te disse que às vezes gostaria de ter nascido pedra. Sim, pedra, pois pedra simplesmente existe e não sente. Acho que eu sinto demais as coisas... E isso dói um pouco, pesa...

Não, não quero ir mais na psicóloga não, mãe! Não me obriga... Gosto de gente que conversa, como se fosse um pingue-pongue. Esse lance de escancarar o coração e depois nem receber uma palavra em troca me deixa com a sensação de ter sido ludibriada... É, aprendi essa palavra na aula de Português. Você sabe que é a minha matéria preferida... Gosto de descobrir novas palavras, porque elas me ajudam a traduzir algumas coisas que sinto. Alguns sentimentos ficam presos porque não têm palavra que consiga explicar. Acho que a gente tinha que ter a liberdade de inventar palavras. Por exemplo, como se dá nome àquela sensação que a gente tem de já ter vivido algo? Ah, tem?! Não sabia... Ah, mãe, eu não sei francês... Não sei ainda, pois quero aprender todas as línguas do mundo, para não me faltarem mais palavras para explicar os sentimentos que pesam no peito...

Ah, mãe, calma, já tô indo... a louça bem que podia esperar... Não sei por que as pessoas têm essa urgência de lavar a louça logo depois que comem. Isso tinha que fazer mal. Alguém bem que podia provar que lavar louça depois da refeição fazia mal, igual a tomar banho... É, vovó falava isso, esqueceu? Não, mãe, não tô te enrolando não. É que bateu uma vontade tão grande de escrever um poema... Sobre o quê? Sobre beija-flor. Por quê? Ah, foi por causa de uma música danada de bonita que eu tava ouvindo. Você não deve conhecer não... Não! Não vou cantar, claro que não!

Quinze minutos?! Poxa, mãe, quinze minutos não dá para pensar nem em um título... A louça pode esperar meia hora...

Mãe, o que são “segredos de liquidificador”? Tentei imaginar um sentido para isso, mas não consigo... Ah, já sabe qual é a música que eu tava ouvindo? Assim ficou fácil, né? Você também adora essa música? Eu sei por quê... Porque era uma das músicas que papai mais ouvia...

Ah, mãe, não faz essa cara de tristeza que minha alma logo pesa... Tá bem, eu prometi que não ia mais falar nele, mas é que é muito difícil pra mim... Recordações são como ladrão, chegam assim de repente, sem avisar... Tá bem, eu prometo que vou tentar pensar mas não falar... Desculpa... É que você disse para a dinda que tinha perdoado... Aí eu pensei que... Tá bem, não falo mais nisso...

Vou cantar...

Pra que mentir
 Fingir que perdoou
Tentar ficar amigos sem rancor...”


Não, mãe, tô brincando! Não me belisca que dói...

Mãe, a última vez que você me beliscou desse jeito foi aquele dia que o moço da padaria olhou tão fundo no teu olhar que eu não resisti e dei escrito num papel o número do teu telefone pra ele... Não, mãe, eu não achei ele feio não... É que eu tenho uma mania de olhar pra dentro das pessoas e achei que ele tinha algo bem bonito por dentro.

Para de dizer que sou maluca, que me ofendo. Mas no fundo sei que eu sou diferente das pessoas desse mundo mesmo... Será que um dia vou encontrar alguém igual a mim para ser meu par? Acho que a gente acaba se procurando em outra pessoa, né? Acho que eu quero casar comigo mesma...

Sei que sou nova pra pensar em casamento, mãe. E nem acho que esse negócio de par seja verdade. Eu to brincando. Acho que a gente não nasceu metade, a gente já nasceu inteiro... É, e quando a pessoa fica falando que só vai ser feliz quando achar a outra metade da laranja, é bem capaz que nunca consiga um suco que preste... suco azedo, isso sim...

Mãe, queria que você soubesse uma coisa:  essa noite eu te ouvi chorando...   Não, não me diga que estava sonhando, pois sei que tua alma também pesa às vezes, mas você tenta disfarçar, tipo aquela tatuagem que a pessoa se arrepende de ter feito e depois tenta esconder... Não esconde não, mãe, chora, sente, deixa essa dor fluir...

“Você sonhava acordada / Um jeito de não sentir dor/

Toma esse poema que eu fiz... É pra você. E eu vou lavar essa louça agora, que ela já tá virando um fantasma a me assombrar... Acabou o detergente?!


Dores de parto
De idas
Feridas
Partidas

Sua dor
Não é maior que a minha
Nem menor

Dor não se mede
Se vence

Só sabe o tamanho de uma dor
Aquele que a sente

Dor não se prende

Chore
Extravase
Se arrebente
Sente tua dor
Porque a dor
Quando verdadeiramente sentida
Tem a liberação de partir...

Dores de parto
De idas
E vindas...



https://www.youtube.com/watch?v=AFjjUoW8j3o



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